Sacerdotes com o Coração de Cristo
Sacerdotes com o Coração de Cristo
Cinco breves tópicos de reflexão, do Magistério do Papa Francisco
No dia 4 de agosto de 2019, por ocasião do 160º Aniversário da morte do Santo Cura d’Ars, o Papa Francisco enviou uma Carta endereçada a todos os Sacerdotes, para lhes agradecer pelo seu generoso serviço e encorajá-los a abraçar com amor a sua vocação.
Neste precioso texto, o Santo Padre usa com frequência a palavra “coração”, a partir da qual se pode iniciar uma reflexão e uma meditação por ocasião do Dia de Santificação do Clero, que todos os anos se celebra na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus.
GRATIDÃO
Muito obrigado pela alegria com que soubestes dar a vossa vida, mostrando um coração que ao longo dos anos combateu e lutou para não se tornar estreito nem amargurado e, pelo contrário, ser diariamente alargado pelo amor de Deus e do seu povo, um coração que, como o bom vinho, o tempo não azedou, mas deu-lhe uma qualidade cada vez mais fina; porque «é eterna a sua misericórdia».
Um coração agradecido. Ser Sacerdote segundo o Coração de Cristo significa revestir-se d’Ele até ao ponto de ter os seus mesmos sentimentos. Entre tantas virtudes, o Coração de Jesus está aberto à gratidão; Ele agradece ao Pai pelos prodígios que realiza aos olhos dos pequenos, escondendo-os a quem, ao invés, fechado na presunção da sabedoria humana, não consegue vê-los (cf. Mt 11,25). Por isso, a gratidão é uma qualidade especificamente cristã e deve pertencer ao modo de ser do pastor; com efeito, S. Paulo exorta-nos assim: “Estai sempre alegres, rezai incessantemente, em tudo dai graças” (1Ts 5,16). O termo que traduz “dai graças” é “eucaristia”. O Sacerdote é assimilado ao Coração de Cristo de modo especial na celebração eucarística, que une ao sacrifício de amor do Senhor pelo seu Povo. Ao mesmo tempo, o Papa Francisco deu com frequência voz ao sentimento de gratidão do Povo de Deus em relação aos presbíteros, pelo generoso serviço e pela oferta da sua existência.
MISERICÓRDIA
Através dos degraus da misericórdia podemos descer até ao ponto mais baixo da condição humana – fragilidade e pecado incluídos – e subir até ao ponto mais alto da perfeição divina: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso». E assim ser «capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de saber dialogar e também de descer à sua noite, à sua escuridão sem se perder».
Um coração misericordioso. Quando Jesus atravessa as aldeias e as cidades, passa curando e fazendo bem a todos os que estão prisioneiros do mal (cf. At 10,38). Jesus não tem medo de se contaminar com a fragilidade humana, mas, antes, desce aos abismos da fragilidade humana e do pecado, para revelar o Coração misericordioso do Pai que levanta das quedas cada um dos seus filhos e os chama à alegria do perdão. O nome de Deus que Jesus revela é “misericórdia”. Na Homilia da Santa Missa do encerramento do Jubileu da Misericórdia, o Santo Padre afirmou que “a verdadeira porta da misericórdia é o Coração de Cristo”.
O Sacerdote, configurado com Cristo, é antes de mais o ministro da misericórdia e da reconciliação. Levando no seu coração a memória de ter sido olhado e chamado pelo Senhor não pelos méritos pessoais, e fazendo diariamente a experiência de ser tocado pela misericórdia de Deus em tudo aquilo que vive e realiza, deve tornar-se sinal acolhedor do amor de Deus que quer chegar a todos, em todas as situações da vida, para curar do mal. Temos necessidade de Sacerdotes de trato misericordioso, capazes de acolher, escutar e acompanhar os irmãos, de modo especial no Sacramento da Reconciliação.
COMPAIXÃO
Muito obrigado por todas as vezes em que, deixando-vos comover até às entranhas, acolhestes os que tinham caído, curastes as suas feridas, oferecendo calor aos seus corações, mostrando ternura e compaixão como o Samaritano da parábola (cf. Lc 10,25-37). Nada é tão urgente como isto: proximidade, vizinhança, estar próximo da carne do irmão que sofre.
Quanto bem faz o exemplo de um sacerdote que se aproxima e não se afasta das feridas dos seus irmãos. Reflexo do coração do pastor que aprendeu o gosto espiritual de se sentir um só com o seu povo.
Um coração compassivo. Os Evangelhos narram com frequência que Jesus, à vista das multidões cansadas e oprimidas, sente profunda compaixão (cf. Mt 9,36). Com efeito, as suas “entranhas comovem-se”, especialmente quando se confronta com a dor e o sofrimento provocados pela doença, pela marginalização e por toda a forma de pobreza material e espiritual; como Bom Samaritano, cheio de compaixão, Ele para diante da carne ferida dos irmãos e cura-a, tornando-se manifestação viva do amor de Deus Pai. Aos Sacerdotes, ministros de Cristo, pede-se o mesmo coração compassivo, que se exprime na proximidade, na participação real e integral nos sofrimentos e nos trabalhos das pessoas, na capacidade de relações que reacendem a esperança, na cura das feridas do Povo, de modo especial através da mediação da graça sacramental.
VIGILÂNCIA
Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou conosco mesmos, podemos correr a tentação de nos agarrar a uma tristeza adocicada, a que os padres do Oriente chamavam acédia, um enfraquecimento da vontade.
Tristeza que torna estéreis todas as tentativas de transformação e de conversão, propagando ressentimento e animosidade… Irmãos, quando essa tristeza adocicada ameaça apoderar-se da nossa vida ou da nossa comunidade, sem nos assustarmos nem preocuparmos, mas com determinação, peçamos e façamos pedir ao Espírito que «venha despertar-nos, dar um solavanco ao nosso torpor, libertar-nos da inércia! Desafiemos a rotina, abramos bem os olhos e os ouvidos, e sobretudo o coração, para nos deixarmos desligar daquilo que sucede ao nosso redor e pelo grito da palavra viva e eficaz do Ressuscitado”.
Um coração vigilante. Muitas vezes Jesus recordou a importância da vigilância do coração que, que como servos fiéis, nos faz esperar com prontidão a vinda do dono da vinha; trata-se de dar espaço ao dom do Espírito Santo que, mesmo no meio dos compromissos diários e das obscuridades do tempo presente, nos faz discernir a presença do Senhor, nos torna atentos à sua Palavra, nos faz operosos na caridade de modo que não se esgote o azeite na lâmpada da nossa vida e, como as virgens prudentes, vamos ao encontro do Esposo que vem. O coração mantém-se vigilante, mas também através da luta espiritual; Jesus mesmo a enfrenta no deserto, vencendo as tentações do demónio e, no fim da sua vida, despertando os seus discípulos que, no Getsêmani, adormeceram: “Vigiai e orai, para não cairdes em tentação” (Mt 26,41). Sucede também ao Sacerdote aperceber-se daquilo a que o Papa Francisco chamou “o cansaço da esperança”, aquela amargura interior que muitas vezes nasce da distância entre as expectativas pessoais e os frutos visíveis do apostolado, ou aquela aridez do coração que frequentemente leva a arrastar os compromissos pastorais e a mesma oração no hábito, na resignação e até no desleixo. É necessário, ao invés, deixar-se “despertar” sempre pela Palavra do Senhor e pelo grito do Povo de Deus.
CORAGEM
Para manter o coração corajoso é necessário não descurar estes dois vínculos constitutivos da nossa identidade: o primeiro, com Jesus.
Sempre que nos desligamos de Jesus ou descuramos a nossa relação com Ele, pouco a pouco o nosso compromisso torna-se árido e as nossas lâmpadas ficam sem azeite e sem condições de iluminar a vida (cf. Mt 25, 1-13).
Neste sentido, queria encorajar-vos a não esquecer o acompanhamento espiritual, tendo um irmão com quem falar, confrontar-se, discutir e discernir em plena confiança e transparência o próprio caminho… O outro vínculo constitutivo: reforçai e alimentai o vínculo com o vosso povo. Não vos isoleis da vossa gente nem dos presbíteros ou das comunidades. Menos ainda, não vos entrincheireis em grupos fechados ou elitistas. Isto acaba por sufocar e envenenar o espírito. Um ministro corajoso é um ministro sempre em saída.
Um coração corajoso. Contemplando o Coração de Jesus, podemos captar os dois vínculos fundamentais, a partir dos quais Ele vive a sua missão: o Pai Celeste e o povo. Os Evangelhos mostram-nos como, na jornada-tipo de Jesus, se alternam e se entrelaçam, num sábio equilíbrio, o cuidado da relação com Deus e a solidariedade ativa com os irmãos. A caridade dos seus gestos nunca é separada do silêncio e da oração, e a fadiga de um ministério, que nem tempo lhe deixa para comer, nunca é separada da firme vontade de se retirar, para cultivar o íntimo colóquio de amor com Deus Pai. Do mesmo modo, o Sacerdote segundo o Coração de Cristo é aquele que “habita” entre o Senhor a quem consagrou a vida e o Povo que foi chamado a servir; ele poderá viver uma frutuosa caridade pastoral, na medida em que nele não se apagar a vida interior, a oração pessoal e comunitária e o deixar-se guiar no acompanhamento espiritual.
As cinco palavras propostas para o Dia de Santificação do Clero, tiradas da Carta que o Papa Francisco dirigiu aos Sacerdotes em agosto passado, referem-se a um coração sacerdotal realmente “consagrado” ao de Cristo, ou seja, radicado na relação pessoal com Ele e por isso configurado aos seus mesmos sentimentos.
Como foi revelado no âmbito psiquiátrico e psicoterapêutico acerca de alguns problemas de natureza moral e afetiva da vida dos padres, a vitalidade e o cuidado desta relação espiritual com Deus, juntamente com o desenvolvimento de uma boa maturidade humana e de sãs relações interpessoais, constitui o melhor ambiente para o cuidado do celibato sacerdotal e da espiritualidade presbiteral.
O que, ao invés, representa um alto potencial de risco na vida do padre é aquilo a que se chamou “déficit de intimidade”. Todo o estado de vida, para ser integralmente abraçado e protegido de incursões ameaçadoras, deve cultivar uma especial “relação íntima” que lhe valorize as possibilidades e lhe diminua os riscos: para um sacerdote, trata-se da amizade pessoal e cotidiana com o Senhor.
O pressuposto humano, psicológico e espiritual para o sucesso de uma vida sacerdotal é a relação íntima com Deus. O déficit de intimidade não é senão a aridez da vida espiritual e, por consequência, a falta daquela amizade profunda, interior e vital com o Senhor, que constitui a base da fecundidade pessoal e pastoral. O padre que já não reza com fidelidade e que descuida dos elementos estruturantes da sua relação de intimidade com o Senhor acumula um “déficit” perigoso, que pode gerar sentimento de vazio, percepção de frustração e insatisfação, dificuldade na gestão da solidão, das necessidades e dos afetos, até ao risco de exposição em amizades e ligações “externas” que, naquele ponto, poderiam fazer desmoronar um edifício humano-espiritual já marcado por diversas fendas.
Para que o sacerdote seja configurado ao Coração de Cristo, é necessário que o ponto firme da sua vida quotidiana e o fundamento da sua estrutura humana e espiritual sejam constituídos pelo húmus interior da profunda amizade pessoal com o Senhor, a partir da qual a gestão da própria vida, o celibato e a missão apostólica possam ser psicologicamente aceitáveis e espiritualmente fecundos.